As ferraduras do velho
babão
Eu tinha talento, tenho talento. Às vezes olhava minhas mãos e compreendia
que podia ter sido um grande pianista. Mas o que tinham feito minhas mãos?
Coçado o saco, preenchido cheques, amarrado cadarços, puxado descargas de
banheiro, etc. Desperdicei minhas mãos. E minha mente.
Andei até a livraria me sentindo meio deprimido. O homem nascia para
morrer. O que significava isso? Ficar por ai esperando. Esperando o “Trem A”.
Esperando um par de peitões numa noite de julho num quarto de hotel da esquina.
Esperando o rato cantar. Esperando a cobra criar asas. Por aí.
Aquela não era ela. Ou talvez tivesse descoberto um método de vencer o
processo de envelhecimento. Era só ver os astros do cinema; tiravam a pele do
rabo e grudavam na cara. A pele do rabo era a última a enrugar-se. Andavam
todos, nos últimos anos de vida, com caras de bunda. Ela faria isso? Quem
queria viver até os 102 anos? Só um idiota. Por que ela desejaria ficar? Toda
aquela coisa era maluca. Dona morte era maluca. Eu era maluco. Os pilotos das
companhias aéreas eram malucos. Nunca se deve olhar para o piloto. Só embarcar
e pedir bebida.
Ela perguntou o que eu faria por ela.
- Bem, mataria minha baratinha de estimação por você, daria uma surra em
minha mãe se ela estivesse aqui, eu...
Olhei em volta, procurei uma mosca pra matar.
- Bom, então o que está esperando, a última rosa do verão?
Um detetive sem um ferro é como um garanhão de camisinha. Ou como um
relógio sem ponteiro.
- Você ficou louca?
- Quem sabe? A insanidade é relativa. Quem estabelece a norma?
Do lado de fora, atravessei decidido a poluição. Tinha os olhos castanhos,
os sapatos velhos e ninguém me amava. Mas tinha coisas a fazer.
Tampei a garrafa, guardei-a de volta na gaveta e pensei no que ia fazer em
seguida. Um homem como eu tem sempre coisas a fazer. A gente vê no cinema.
Uma batida da porta. Não, foram cinco batidas uma atrás da outra. Batidas
insistentes. Sempre faço uma leitura das batidas. Às vezes, quando a leitura é
ruim, não atendo.
Começava a me sentir estranho. Qual era o problema? Estaria a dama me
excitando? Ela tinha intestinos como todo mundo. Tinha pêlos nas narinas. Cera
nas orelhas. Qual era a grande coisa? Por que o pára-brisa ondulava à minha
frente como uma grande onda? Devia ser a ressaca. Vodca com cerveja para
rebater. A gente tinha de pagar. O bacana em tomar um porre, porém, era que
nunca se tinha prisão de ventre. Às vezes eu pensava em meu fígado, mas ele
jamais se manifestava, jamais dizia: “Pára com isso, está me matando e eu vou
te matar!”. Assim como meu peito. Meu peito carregava uma bomba que não tinha
contagem regressiva. Ela simplesmente explodia. E naquele dia, ela explodiu
como um meteoro.
Por isso eu bebia mais. Se a gente tivesse fígados ou corações que
falassem, não existiriam os fracassados.
Senti-me introspectivo.
Decidi não fazer mais nada nesse dia.
A vida consumia a gente, consumia mesmo.
Amanhã seria um dia melhor.
No outro dia eu passava mal. Uma fisgada do lado esquerdo do peito.
Estou tendo um ataque cardíaco, pensei. Mas não, aquela fisgada se chamava
“falta”.
Ainda não existe a solução pra isso, mas se existisse seria um tubo que
suga toda falta pela garganta. Eu colocaria tudo aquilo num pote e olharia, pra
lembrar de jogar fora o recheio do amor.
Eu sentia que chegava perto de alguma coisa. Uma coisa bem grande. Tirei a
mão do bolso e peguei o celular. Depois larguei de novo. Pra quem diabos eu
iria ligar? E eu já sabia que horas eram. Eu tinha de pensar. Tentei pensar.
Uma mosca se arrastava na mesa. Enrolei uma revista e dei-lhe uma porrada;
errei. Não era o meu dia. Nem minha semana. Nem meu mês. Nem meu ano. Nem minha
vida. Porra.
À noite do mesmo dia, eu oscilava. Eu mudava de hora em hora.
Sai daquela casa e de repente me sentia melhor em relação a tudo. O
primeiro vagabundo que me abordou ganhou um real. Ao segundo eu disse que
acabara de dar um real ao outro vagabundo. Terceiro vagabundo, mesma coisa. Nem
o ar estava poluído naquele dia. Eu avançava com determinação. Já decidira
sobre o almoço. Macarrão ao molho branco. Meus pés pareciam bonitos andando na
calçada.
Tudo o que posso dizer é que existem bilhões de mulheres no mundo, certo?
Algumas bem vistosas. Muitas muito bonitas. Mas de vez em quando a natureza nos
sai com um truque bestial, reúne todos os atributos numa mulher especial, uma
mulher inacreditável. Quer dizer, a gente olha e não acredita. Tudo se move em
perfeita ondulação, mercúrio, serpente, a gente vê umas cadeiras, um cotovelo,
uns peitos, um joelho, e tudo se funde numa unidade gigantesca, um todo
inesquecível. Aqueles olhos lindíssimos a sorrir, os lábios imóveis como
prontos para estourar uma gargalhada, pela sensação de impotência da gente. E
elas sabem se vestir, e o cabelo longo incendeia o ar. Tudo demais, porra.
Fiquei sentado na cama, tentando não me mexer. Não queria que aquela
ansiedade chegasse de novo. Tinha tempo de pensar na minha carreira. Talvez
estivesse na profissão errada. Mas era tarde demais pra começar qualquer outra
coisa. Finalmente me mexi. Ainda tinha forças pra levar o copo de água aos
lábios. Esvaziei-o. Joguei-o no chão. Fiquei esperando o sono chegar. Ouvi
gritos lá fora e percebi que estava tudo bem com o mundo. Em cinco minutos,
dormia como uma pedra.
Levantei-me e fui ao banheiro. Me dava raiva olhar o espelho, mas olhei
assim mesmo. Vi depressão e derrota. Bolsas escuras caídas sob os olhos.
Olhinhos covardes; os olhos do rato acuados pelo puto do gato. A pele aparecia
que nem tentava, que odiava fazer parte de mim. As sobrancelhas caíam
retorcidas, pareciam dementes, dementes pêlos de sobrancelhas. Horrível. Uma
aparência repugnante. Então fui escovar os dentes. Dentes. Tínhamos de comer. E
comer e comer e comer de novo. Éramos todos repugnantes, condenados aos nossos
trabalhinhos sujos. Comer e peidar e se coçar e sorrir e festejar nos feriados.
Terminei de escovar e voltei pra cama. Decidi ficar até o meio-dia. Talvez
metade do mundo estivesse morta e ele seria metade menos difícil de enfrentar.
Aí o celular tocou. Deixei tocar. Nunca atendia ao celular na parte da manhã.
Tocou duas vezes e parou. Eu estava sozinho comigo mesmo. E, por mais
repugnante que fosse, era melhor do que estar com alguém, qualquer um, todos lá
fora fazendo seus pequenos truques e piruetas. Puxei as cobertas até o pescoço
e esperei.
Fui a uma psicóloga. Esperei, esperei. Esperamos e esperamos. Todos nós.
Não saberia a psicóloga que a espera é uma das coisas que fazem as pessoas
ficarem loucas? Esperavam pra viver. Esperavam pra morrer. Esperavam pra
comprar papel higiênico. Esperavam na fila pra pegar dinheiro. E, se não tinham
dinheiro, precisavam esperar em filas mais longas. A gente tinha de esperar pra
dormir e esperar pra acordar. Tinha de esperar pra se casar e esperar pra se
separar. Esperar pela chuva e esperar pelo sol. Esperar pra comer e esperar pra
comer de novo. A gente tinha de esperar na sala de espera de uma psicóloga, e
começava a pensar se não estava ficando triste também.
As encrencas e a dor é que mantém a gente vivo. Um trabalho de tempo
integral. E às vezes nem dormindo dá pra descansar. No meu último sono, eu me
via embaixo de um elefante, não podia me mexer e ele soltava um dos maiores
cagalhões que eu já vira, já ia cair, e aí meu gato, Hamburguer, passou por
cima da minha cabeça e eu acordei. Se a gente contar esse sonho a uma
psicóloga, ela vai tirar uma conclusão horrível. Pois se a gente lhe paga o
salário, ela vai dar um jeito pra que a gente se sinta mal, pra que a gente a
sustente pro resto da vida. Vai dizer que o cagalhão é um sinal e que a gente
está assustado ou que deseja aquilo. É só um sonho sobre um grande cagalhão de
elefante, nada mais. Às vezes as coisas são apenas o que aparecem ser, sem nada
demais. O melhor intérprete de um sonho é o próprio sonhador. Guarde o seu
dinheiro no bolso. Ou aposte num bom cavalo.
- Você é uma filósofa medíocre. – Ela disse.
- Pra mim, eu sou perfeito. – Respondi.
- A gente vive de ilusões. – Ela disse.
- E qual o problema? O que é que tem de pior por aí? – Eu perguntei.
- O fim das ilusões. – Ela respondeu.
Me sentia esquisito. Como se nada tivesse importância, sabe como é?
Ela aqui ou ela lá. O jogo me cansou. Perdeu a graça pra mim. A existência
era não só absurda, era simplesmente trabalho pesado. Pense em quantas vezes a
gente veste roupa de baixo durante toda a vida. É surpreendente. É estúpido.
Então ouvi a sirene de uma ambulância. Estava aliviado.
Quando a gente não ouve, a sirene é pra gente.
Passei a pensar em soluções pra vida. As pessoas que resolviam as coisas
em geral tinham muita persistência e um pouco de sorte. Se a gente persistisse
o bastante, a sorte em geral chegava. Mas a maioria das pessoas não podia
esperar, por isso desiste.
Na verdade, me dava vontade de deitar em algum lugar e dormir umas duas
semanas. O jogo estava me cansando. Um dado momento havia uma certa emoção. Não
muita, mas alguma. Você não vai querer ouvir. Amante rejeitado três vezes. Nada
pra fazer além de curar corações aflitos que ninguém cura. Não pelo preço que
eu cobro.
Tinha os olhos castanhos, os sapatos velhos e ninguém me amava. Com
exceção de mim mesmo.
Bom, o jogo não funcionou. Todo mundo estava fodido. Não havia vencedores.
Só vencedores aparentes. Todos nós corríamos atrás de nada. Dia após dia.
Sobreviver parecia a única necessidade. Não parecia o bastante.
A vida estava chata. Me senti oprimido, gasto. Os pés doíam.
Quase bati o carro outro dia. Ouvi buzinas e alguém me chamando de babaca.
Essa gente não tem originalidade.
Todo mundo está certo e errado, e de pernas pro ar. A verdade é que as
pessoas se prendem. Uma vez que corta o cordão umbilical, a gente se prende a
outras coisas. Vistas, som, sexo, miragem, mães, masturbação, assassinato e ressaca
de segunda-feira.
Comecei a pensar em outro trabalho. Ali estava eu, prestes a me deixar
levar de novo, e francamente, não tinha nenhum gosto por isso. Só esperando o
último dia ou a última noite. Contando tempo. Que merda. Eu daria um grande
filósofo. Diria a todo mundo como somos tolos, zanzando por aí a sugar ar pra
dentro e pra fora dos pulmões.
Tomei um copo d’água. E tomei a liberdade de me sentir bem. Por enquanto.
Fui a um restaurante outro dia. O garçom apareceu. Cara de solitário. Não
tinha sobrancelha nenhuma. Um tipo maluco. Não havia como evitá-los. A maior
parte do mundo estava doida. E a parte que não era doida era furiosa. E a parte
que não era doida nem furiosa era apenas idiota. Eu não tinha chance. Só
agüentar e esperar pelo fim. Era trabalho duro.
A Terra. Poluição, violência, ar envenenado, água envenenada, comida
envenenada, o ódio, a impotência, tudo. A única coisa bonita na Terra são os
animais, e já estão sendo dizimados, cedo estarão extintos, com exceção dos
cavalos e ratos de estimação. É tão triste, não admira que eu beba tanto.
Freqüentemente, os melhores momentos da vida são quando a gente não está
fazendo nada, só meditando, ruminando. Quer dizer , a gente pensa que todo o
mundo é sem sentido, ai vê que não pode ser tão sem sentido assim se a gente
percebe que é sem sentido, e essa consciência de falta de sentido já é quase um
pouco de sentido. Sabe como é? Um otimismo pessimista.
Era hora de recapitular, recapitular pra mim mesmo. Afinal de contas, eu
tinha feito tudo o que havia me proposto na vida. Dera os passos certos. Não
dormia na rua. Claro, havia um bocado de gente boa dormindo nas ruas. Não eram
idiotas, apenas não se encaixavam na maquinaria necessária no momento. E essas
necessidades viviam mudando. Era uma luta desigual, e se a gente dormia na
própria cama já era uma vitória preciosa contra as forças. Eu tive sorte, mas
em alguns dos passos que dera não os dera inteiramente sem pensar. Em geral,
porém, em um mundo horrível, e eu muitas vezes me sentia triste pelos outros.
- Tenho medo de você, é muito agressivo. – Ela disse.
- Mas você mesma viu que ela está me matando. – Eu disse.
- Na certa não tinha essa intenção. – Ela disse.
- A gente não vai nos “na certa” quando se trata de amor e armas.
Eu falhei com o amor. Nada realmente errado de cada vez. Tudo destruído
por briguinhas bestas. Implicâncias por nada. Sentir ódio por tudo e por nada.
Dia a dia, ano a ano, ralando. Em vez de se ajudar um ao outro, a gente se
cortava todos os dias, por uma coisa e outra. Uma aporrinhação infindável.
Torna-se uma competição barata. E, uma vez que a gente entra, vira um hábito.
Parece que não vai conseguir sair. E de repente, sai. Completamente.
Portanto, agora, ali estava eu. Sentado ouvindo a chuva. Se eu morresse
agora, ninguém verteria uma lágrima em todo o mundo. Não que eu precisasse
disso. Mas é estranho. Até onde um trouxa pode ficar solitário? Mas o mundo
estava cheio de velhos rabugentos como eu. Sentados ouvindo a chuva e pensando
para onde foi todo mundo. Aí é que a gente sabe que está velho, quando fica
pensando pra onde foi todo mundo.
Me sentia insatisfeito e, francamente, meio com medo de tudo. Não estava
indo a lugar nenhum nem o resto do mundo. Estávamos todos rondando por aí, à
espera da morte, e enquanto isso fazendo coisinhas pra encher o tempo. Alguns
nem faziam coisinhas. Eram vegetais. Eu era um deles. Não sei que tipo de
vegetal. Me sentia um nabo. Coloquei uma música, acendi um cigarro e fiquei
fingindo que sabia o que diabos estava acontecendo.
Tinha uma tendência a me preocupar quando não havia nada com o que se
preocupar. E quando havia alguma preocupação real eu tomava um porre.
Gente chata da porra. A Terra está cheia deles. Propagando mais gente
chata. Um espetáculo de horror . A Terra botando chatos pelo ladrão.
Eram dez horas da noite. A lua estava cheia e minha vida não tinha
sentido.
De alguma forma aquela coisa pequena me fez sentir bem. Eu era de fácil
agradar. O resto do mundo é que era o problema.
Pulp
Charles Bukowski